Selma Maria Ferreira Lemes - Advogada,
mestre e doutora pela Universidade de São Paulo –USP. Coordenadora e professora
do curso de arbitragem do Programa de Educação Continuada da Fundação Getúlio
Vargas – PEC/FGV em SP. Autora dos livros “Árbitro, Princípios da Independência
e da Imparcialidade” (São Paulo, LTr, 2001) e do recém lançado “Arbitragem na
Administração Pública. Fundamentos Jurídicos e Eficiência Econômica” (São
Paulo, Quartier Latin, 2007).
Muitos
poderão pensar que uma cláusula compromissória com o condão de instituir a
arbitragem só surtiria efeito quando inserida num contrato específico, o que, a
princípio, estaria absolutamente correto.[1] Todavia,
esta conclusão não necessariamente prosperará diante de determinadas situações,
tais como aquelas em que as partes encontram-se vinculadas por diversas
transações comerciais, em especial as oriundas do comércio internacional, em
que milhões de negócios são entabulados, cumpridos rigorosamente e considerados
firmes por ordens de compras, faturas pró-formas, contratos-tipos, etc enviados
por correio eletrônico, fax e outros meios céleres de comunicação.
Estas
transações são operadas em âmbito global e paulatinamente vêm alterando o rigor
das formas contratuais, de modo consuetudinário ou por meio de iniciativas
reguladoras do comércio eletrônico ou convenções internacionais específicas,
entre elas, a Convenção das Nações Unidas sobre Contratos de Compra e Venda
Internacional de Mercadorias firmada em Viena, em 1980 (não vigora no
Brasil).
Há
situações em que uma simples transação de compra e venda internacional
desencadeia diversos atos interligados e vinculantes, geralmente com a
interferência de terceiros, como as transações em bolsas de mercadorias,
serviços intermediários consubstanciados em contratos bancários (crédito
documentário), corretagem, agência, distribuição, seguros, etc. Apesar das
especificidades desses contratos, contudo, não há como negar que essas
transações são coligadas e interdependentes ao objetivo final:
operacionalização eficaz do contrato de compra e venda mercantil.
Com
efeito, alguns destes tipos de contratos podem gerar interessantes
conseqüências quanto à abrangência da eleição da arbitragem como forma de
solução de controvérsias referente ao negócio. Neste sentido indaga-se: pode a
cláusula compromissória prevista em algum desses contratos ser estendida ao
contrato de compra e venda, em que não há tal previsão expressa ?
Para
responder esta questão avocamos interessante precedente jurisprudencial
originário do Tribunal Supremo Espanhol, que decidiu sobre a possibilidade de
reconhecimento e execução, na Espanha, de sentença arbitral ditada na França,
tendo como partes uma empresa francesa e outra espanhola, contra a qual se
solicitava a execução da sentença arbitral. Note-se, que um dos argumentos da
defesa para afastar e negar o pedido foi invocar o art. V, 1, “a” da
Convenção sobre Reconhecimento e Execução de Sentenças Arbitrais Estrangeiras
firmada em Nova Iorque em 1958 (CNI), em vigor na França e Espanha. O
mencionado art. V, 1, “a” da CNI, refere-se à ausência de cláusula
compromissória, como motivo denegatório do reconhecimento da sentença arbitral
estrangeira. A defesa alegava que dentre as cláusulas do contrato de compra e
venda não havia cláusula compromissória e, portanto, a sentença arbitral ditada
na França seria considerada nula ou inexistente.
Porém,
o referido Tribunal, ao exarar sua decisão e efetuar a análise dos fatos e do
direito que instruíam a ação levou em consideração que as partes ao entabularem
o negócio o fizeram por meio de um contrato de corretagem, com uma terceira
empresa, no qual figuraram como compradora, a empresa espanhola e, como
vendedora, a empresa francesa. Nas regras referentes às condições gerais de
venda havia indicação que todas as controvérsias decorrentes do contrato seriam
solucionadas por arbitragem pela Câmara Arbitral de Paris (entidade geralmente
nomeada para solução de conflitos referentes às transações de produtos
originários do solo, como frutas, cereais, etc e, muitas vezes, indicada em
negócios entabulados por entidades profissionais), que haveria de resolver em última
instância e de acordo com o seu Regulamento. As partes declararam conhecer e
aceitar referida disposição. A empresa francesa confirmou a venda para a
empresa espanhola reportando-se às condições do negócio exaradas no documento
emitido pela empresa corretora. A empresa espanhola encaminha correspondência
por fax indicando normas complementares que desejava incluir na confirmação de
venda recebida da empresa francesa, reiterando, ainda, que aceitava todas as
demais especificações.
O
Judiciário espanhol, ao analisar esses documentos e as demais correspondências
trocadas entre as partes, concluiu que se permitia “sem nenhuma espécie de
dúvida considerar satisfeito o requisito imposto pelo art. IV, “b” da
CNI [ter anexado o documento em que consta a cláusula compromissória], pois
ficou suficientemente assegurada a vontade das partes em incorporar ao conteúdo
do contrato, como uma cláusula a mais, a referente à arbitragem, sem que, ao
contrário, seja justificado alegar o desconhecimento da existência de referida
cláusula afirmada pela oponente, por mais que esta esteja incluída em um
contrato-tipo, que se remete em bloco ao particular celebrado entre as partes,
pois a recepção por esta da confirmação expedida pela vendedora de n. B-93190,
que não nega, unida à resposta que a compradora encaminhou à vendedora, permite
afirmar, sem circunlóquios, que teve conhecimento de que a claúsula
compromissória estava incluída no contrato como parte dele e nada objetou sobre
este particular; mas, ao contrário, manifestou expressamente sua conformidade
com as cláusulas que não alterou ou modificou.”
Note-se
que este tipo de extensão da eficácia da cláusula compromissória recebe na
doutrina a denominação de “cláusula arbitral por referência”, comum nas
relações comerciais entabuladas por meio de contratos-tipos das associações
profissionais especializadas, como as que atuam nas áreas de algodão, café e
cereais em geral.
O
Tribunal Supremo Espanhol, em decorrência do acima relatado e de outras
questões de fato e de direito aduzidas no processo, reconheceu e determinou a
execução da sentença arbitral ditada na Câmara Arbitral de Paris, que condenou
a empresa espanhola por inadimplemento contratual.
Destarte,
deste precedente exarado em cortes estrangeiras podemos aferir que, se fosse
transladado para o ambiente nacional, poderia ter idêntica solução, pois ambas
as legislações (espanhola e brasileira) dispensam efeito vinculante à cláusula
compromissória, bem como possuem a CNI como lei incorporada ao ordenamento
interno.
Na
linha do acima abordado, note-se que o Superior Tribunal de Justiça - STJ, em
maio de 2005, no reconhecimento e homologação de Sentença Arbitral Estrangeira
em que pela primeira vez se aplicou a CNI, na SEC 856, reconheceu a eficácia de
cláusula arbitral inserida em contrato internacional de venda e compra de
algodão classificando-a como uma cláusula arbitral tácita, pois apesar da
alegação da parte brasileira de não ter assinado o contrato no qual a citada
cláusula estava inserida, participou da arbitragem que transcorreu na
Câmara de Arbitragem da Liverpool Cotton Association.
Também,
digno de nota foi a extensão da cláusula compromissória para grupos societários
no interessante precedente do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo,
conhecido como caso Trelleborg (Apelação Cível n. 267.450.4/6-00). Refere-se a
uma arbitragem processada à luz do art. 7º da LA (instituição judicial da
arbitragem) em que por determinação na sentença judicial no pólo passivo foi
incluída a empresa-mãe de origem sueca, que alegou não ter firmado a cláusula
compromissória. Todavia, ficou demonstrado e provado nos autos que a
empresa-mãe teve ativa participação no contrato que transferia à empresa
brasileira do grupo o controle de empresa que atuava no ramo de borracha. Na
Apelação julgada pela 7º Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça do
Estado de São Paulo, em 24 de maio de 2006, foi mantida a decisão de primeira
instância. Foi lavrada a seguinte ementa: “Sentença que instituiu
Tribunal Arbitral para dirimir conflito entre as partes – Ilegitimidade de
parte passiva afastada – Argumento reiteradamente desenvolvido que cai por
terra, face às provas dos autos que demonstram à toda evidência o envolvimento
nas negociações de que decorreu o litígio instaurado – Inexigibilidade de haver
prévio contrato – Art. 1º da Lei 9.307/96 que tem como exigência a capacidade
das partes para contratar, o que deve ser entendido como capacidade civil para
manter relação jurídica que envolva direitos patrimoniais disponíveis.”
Por
fim importa notar que a Comissão das Nações Unidas para o Desenvolvimento do
Direito Mercantil Internacional, conhecida pela sigla em inglês UNCITRAL, vem
de recomendar no 39º Período de Sessões, em 07 de julho de 2006 e foi aprovado
pela Assembléia Geral da Organização das Nações Unidas (Assembléia Geral da
ONU), na 61º Sessão (2006), que a interpretação do Art. II, inciso 2 da
CNI: “ Entende-se-á por acordo escrito uma cláusula arbitral inserida em
contrato ou acordo de arbitragem, firmado pelas partes ou contido em troca de
cartas ou telegramas,” seja aplicada reconhecendo que as circunstâncias
que descreve não são exaustivas.[2]
Em
decorrência do acima relatado forçoso é de concluir que, dependendo da situação
presente em cada caso, a interpretação extensiva da cláusula arbitral seria
perfeitamente possível, haja vista que os negócios jurídicos devem ser
analisados à luz da boa-fé e seus consectários, a confiança, a lealdade
contratual, etc; que, aliás, representam a pedra de toque de todas as relações
jurídicas.
Notas:
[1] A propósito cf nosso artigo “Cláusulas
arbitrais ambíguas ou contraditórias e a interpretação da vontade das partes, “Reflexões
sobre Arbitragem - In Memoriam do Desembargador Cláudio Vianna
de Lima”, Pedro Batista MARTINS e José M. Rossani GARCEZ (orgs.) São
Paulo, LTr, 2002 p.188/208.
Fonte: Âmbito Jurídico
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