“Salvo estipulação em contrário”. Promover a volta dessas quatro
palavras ao texto do artigo 9º da Lei de Introdução às Normas do Direito
Brasileiro — antiga Lei de Introdução ao Código Civil — pode, na
opinião da advogada Fabiane Verçosa, fazer mais diferença hoje, para a prática do Direito no Brasil, do que a promulgação de uma nova Lei de Arbitragem.
A supressão do trecho, ocorrida em 1942 — em circunstâncias jamais esclarecidas —
teria, segundo ela, causado uma situação de insegurança jurídica para
os contratos internacionais que ainda não foi totalmente superada. Antes
da mudança, caso as partes envolvidas em um contrato internacional
tivessem escolhido o Direito de um país para reger o seu contrato, a
regra era aplicá-lo. Somente se as partes não apresentassem qualquer
disposição nesse sentido é que seria aplicada a lei do país onde se
assinou o contrato. Mas com a alteração da lei introdutória, os
contratos passaram a ser, necessariamente, regidos pela lei do país onde
foi celebrado.
“Essa alteração causou um retrocesso gigantesco no
que tange à autonomia da vontade das partes quanto à eleição do Direito
aplicável aos contratos internacionais”, afirma a advogada, em
entrevista exclusiva à revista eletrônica Consultor Jurídico.
Ela já acumula mais de 10 anos de experiência em arbitragem, e integra
hoje a banca Brandão Couto, Wigderowitz & Pessoa Advogados.
Fabiane
também é doutora e mestre em Direito Internacional pela UERJ. Dá aulas
na pós-graduação da Fundação Getúlio Vargas do Rio de Janeiro e na
graduação e pós-graduação do Ibmec-Rio. Pois é da experiência como
professora de Mediação e Arbitragem que ela tem extraído exemplos que
corroboram outra de suas críticas ao novo anteprojeto.
Para a
professora, um dos efeitos da junção de arbitragem e mediação num mesmo
projeto de lei será o aumento da confusão conceitual entre os dois
institutos. “Eu me pergunto como a população vai lidar com a questão. Em
minhas aulas, é muito comum pelo menos um aluno perguntar se o objetivo
da arbitragem não é o acordo... E isso porque nós temos uma lei só de
arbitragem há mais de uma década.”
Verçosa considera a atual Lei de Arbitragem,
de 1996, “muito boa e de vanguarda”. Reconhece que há situações que a
legislação atual não contempla, mas defende a atuação do Superior
Tribunal de Justiça para tais casos. Para a advogada, antes de tudo é
preciso garantir "o espaço da jurisprudência e da doutrina”.
Leia a entrevista:
ConJur — Como a senhora vê a perspectiva de uma nova Lei de Arbitragem?
Fabiane Verçosa — Nós temos uma lei muito boa e
de vanguarda, elaborada com muito cuidado pelos autores, entre eles o
professor Carlos Alberto Carmona, que hoje, aliás, faz parte da comissão
responsável pelo anteprojeto da nova lei. A Lei 9.307/1996 vem
caminhando bem. Assim que a comissão de juristas com vistas à nova lei
foi formada, em abril deste ano, lembro que o ministro Luis Felipe
Salomão [do STJ] justificou a necessidade de uma nova lei
defendendo que, desde sua promulgação, muita coisa tinha acontecido no
Brasil e que 16 anos fazem muita diferença. Sim, houve mudanças, mas a
sociedade brasileira não passou por nenhuma grande transformação que
justificasse uma nova lei de arbitragem. Da forma como está, acredito
que ela atende perfeitamente, e 16 anos não é tanto tempo assim. Basta
comparar com a França, considerada por muitos um dos países paradigmas
em arbitragem. Lá, eles demoraram 30 anos para alterar os dispositivos
do Código de Processo Civil francês que regem a arbitragem. Aqui, a
comissão defende que é preciso um novo texto para contemplar situações
que a legislação atual não contempla. De fato, mas são situações que a
jurisprudência está resolvendo aos poucos. Não são aspectos que exigem
do legislador uma regulamentação urgente. Até porque tem que haver o
espaço da jurisprudência e da doutrina.
Conjur — Poderia dar um exemplo?
Fabiane Verçosa — No que tange à possibilidade
de escolha de lei na arbitragem, eu sigo o entendimento do professor
João Bosco Lee, um dos maiores especialistas em arbitragem no país.
Segundo ele, a rigor, você só pode escolher lei nas arbitragens
internacionais. Na nossa Lei de Arbitragem, o parágrafo primeiro do
artigo 2º diz que as partes poderão escolher livremente as regras que
quiserem ver aplicadas na arbitragem. Só que esse artigo, de acordo com o
professor, só pode ser usado em arbitragem internacional. A questão é
que, diferentemente da lei francesa, a lei brasileira não distingue
arbitragem interna da internacional. Logo, como proceder nesse caso?
Vamos para a doutrina, porque lá temos a definição do que é arbitragem
internacional. E todos os que seguem o entendimento do professor João
Bosco Lee só reconhecerão a possibilidade de escolher a lei nas
arbitragens classificadas pela doutrina como internacionais. Por isso,
eu digo: mesmo que haja lacunas, não há razão para mudar a lei. Apesar
dessa carência, temos como nos socorrer por meio da doutrina. A lei não
diz, por exemplo, quem resolve os conflitos de competência entre o Poder
Judiciário e o tribunal arbitral. Mas para esses casos temos decisões
do Superior Tribunal de Justiça. O entendimento está evoluindo acerca do
assunto e logo vai se pacificar. Seria melhor que a lei brasileira
previsse esse aspecto? Sim, seria, mas isso não me parece imprescindível
a ponto de justificar uma nova lei.
ConJur — Antes de 1996, como era a arbitragem no Brasil?
Fabiane Verçosa — O Brasil, na verdade, passou
129 anos praticamente sem utilizar a arbitragem. O grande responsável
foi um decreto imperial, de 1867. O decreto 3.900 foi o principal
responsável por esse “buraco negro” da arbitragem no Brasil, que só
acabou com a lei de 1996. Embora, vale lembrar, ela não tenha entrado em
vigor imediatamente. Nos 60 dias de vacatio legis [ou “vacância da lei”, que corresponde ao período entre a aprovação e a entrada em vigor de uma lei], foi interposto um recurso no Supremo Tribunal Federal — o Agravo Regimental em Sentença Estrangeira 52.067 —
questionando sua constitucionalidade. O STF, então, teve nas mãos o
poder de decidir se a lei era constitucional ou não. Essa era uma
decisão que não apenas a comunidade arbitral brasileira, mas o mundo
todo, esperava. O STF sabia que tinha uma tarefa importantíssima em
mãos, e o julgamento levou cinco anos. Veja bem, a lei nem havia entrado
em vigor e sua constitucionalidade já era discutida. O julgamento
acabou em 12 de dezembro de 2001. Antes disso, ainda havia um certo
receio de se pactuar arbitragem nos contratos. Como inserir uma cláusula
compromissória no contrato se dali a um ou dois anos o STF poderia
declarar inconstitucional a Lei de Arbitragem? Todos que atuavam com
arbitragem no país aguardavam ansiosamente o julgamento do recurso, o
que aconteceu quase na virada de 2002. Na prática, portanto, temos
apenas 11 anos de vigência da lei.
ConJur — Quem atua em arbitragem está receoso quanto a esse anteprojeto?
Fabiane Verçosa — Acredito que sim. Como eu
disse antes, na prática, é como se a Lei de Arbitragem atual vigesse há
apenas 11 anos, se considerarmos a data em que o STF decidiu por sua
constitucionalidade. E o mais importante é que ela vem funcionando. Em
geral, os tribunais vêm aceitando a arbitragem. Hoje é difícil uma
sentença arbitral, depois de proferida, ser anulada pelo Poder
Judiciário. Uma pesquisa recente da FGV levantou todos os pedidos de
anulação de sentenças arbitrais domésticas no Brasil e constatou um
percentual baixíssimo de anulações. Os tribunais em geral e,
especialmente o STJ, têm sido bastante sóbrios.
ConJur — Entre os juízes, já há um entendimento claro sobre o papel da arbitragem?
Fabiane Verçosa — Salvo algumas exceções, o
Judiciário está entendendo bem o papel da arbitragem. Logo, o receio é
de como ficará o entendimento do Judiciário com uma eventual mudança da
lei. Hoje já existe uma jurisprudência, que está se consolidando. É
difícil um juiz de primeiro grau prolatar uma decisão que vá contra um
entendimento pacificado no STJ. No momento em que se muda a lei, essa
jurisprudência pode mudar. Enquanto isso, há tantas outras leis com
sérias implicações que precisam ser alteradas urgentemente...
ConJur — Pode dar um exemplo?
Fabiane Verçosa — A Lei de Introdução ao
Código Civil, hoje chamada de “Lei de Introdução às Normas do Direito
Brasileiro”. Essa é a nossa principal lei de Direito Internacional
Privado e está desatualizada no que tange à realidade das relações
comerciais internacionais envolvendo partes brasileiras. O diploma
original foi aprovado com o Código Civil de 1916, quando se chamava
“Introdução ao Código Civil”. Em 1942, o texto foi alterado, inclusive
no nome, que incorporou o “Lei de...”. A legislação de 1916 estava em
sintonia com a prática mundial do Direito Internacional. De acordo com o
artigo 13 dessa lei, apenas se as partes não tivessem incluído no
contrato uma disposição em contrário, seria aplicada a lei do país em
que foi assinado o contrato. Ou seja, naquela época as partes poderiam
perfeitamente escolher uma outra lei para reger o seu contrato, como
acontece até hoje na imensa maioria dos países. Mas a lei de 1942, em
seu artigo 9º, retirou justamente o trecho “salvo estipulação em
contrário”. Ou seja, na opinião da maioria dos doutrinadores, desde
então não há alternativa: qualquer disputa relativa a um contrato
internacional que venha a ser submetida ao Poder Judiciário brasileiro
será, necessariamente, regida pela lei do país onde o contrato foi
celebrado.
ConJur — Essa mudança teria motivação nacionalista, considerando que em 1942 o presidente era Getúlio Vargas?
Fabiane Verçosa — À primeira vista, é a
impressão que fica. Mas se você ler a exposição de motivos da lei, verá
que não há uma menção sequer a essa supressão. O que parece ter ocorrido
é que um funcionário do Congresso Nacional foi lá, excluiu sem querer o
trecho “salvo estipulação em contrário” e ficou por isso mesmo. Desde
então, passaram-se 71 anos e nada foi feito.
ConJur — A
ausência desse trecho no texto da lei tem gerado insegurança jurídica
nos contratos internacionais com empresas brasileiras?
Fabiane Verçosa — Sem dúvida. Em todos os
países é possível escolher a lei, menos no Brasil. A não ser que se
tenha incluído no contrato uma cláusula compromissória.
ConJur — A lei atual não contornou essa deficiência?
Fabiane Verçosa — Como o Congresso Nacional
até hoje não aprovou uma lei que colocasse de volta aquele “salvo
estipulação em contrário”, que havia no artigo 13 da Introdução ao
Código Civil, de 1916, a Lei de Arbitragem tratou de dar uma ajuda nesse
sentido. De acordo com o artigo 2º, parágrafo 1º, da lei, se as partes
inserirem no contrato uma cláusula compromissória, eles podem escolher a
lei material que vai reger a arbitragem. Mas isso não impede que
aconteçam situações paradoxais. Vou dar um exemplo hipotético: um
contrato internacional entre a Vale e uma empresa chinesa envolvendo
minério de ferro. Digamos que a Vale vai produzir nos Estados Unidos,
mandar a produção para uma planta da empresa chinesa localizada na
Nigéria, e o valor desse contrato será estipulado em euros. Digamos que o
contrato tenha sido assinado na Alemanha. Se esse contrato for
submetido ao Poder Judiciário brasileiro, a lei a ser aplicada pelo juiz
brasileiro será a alemã, lei do país da celebração do contrato, e que a
princípio não teria nada a ver com nenhuma das partes. A escolha da lei
nacional, caso o contrato estabeleça alguma, será afastada pelo Poder
Judiciário brasileiro. E estamos falando de um contrato internacional. A
única forma de proteger-se disso é incluir no tal contrato a cláusula
compromissória. Os árbitros irão respeitar a escolha de lei, caso as
partes tenham escolhido alguma. Já se não houver essa cláusula...
ConJur — Quanto ao entrave trazido pela mudança na Lei de Introdução ao Código Civil, há alguma discussão em andamento?
Fabiane Verçosa — Já houve vários projetos de
lei nesse sentido tramitando no Congresso Nacional. Além disso, em 1994,
o Brasil assinou uma convenção da Organização dos Estados Americanos
(OEA), no México, que prevê a possibilidade de escolha da lei aplicável
aos contratos internacionais. Infelizmente, mais tarde essa convenção
não foi ratificada pelo governo brasileiro. A doutrina internacionalista
clama para que esse ponto da Lei de Introdução seja alterado. O
professor de Direito Jacob Dolinger, hoje aposentado da UERJ, foi um dos
principais defensores dessa mudança. Além dele, diversos professores de
Direito Internacional Privado publicaram artigos e livros defendendo
essa simples alteração, que faria muita diferença em nosso Direito.
Todos afirmam que ela é urgente, especialmente porque tudo leva a crer
que ocorreu por um descuido na redação. Diante disso, mudar a Lei de
Arbitragem não me parece prioridade. Até porque o Brasil é a bola da vez
no comércio internacional. Se as empresas escolherem a arbitragem, ok.
Mas se as partes, por algum motivo, não incluírem no contrato a cláusula
compromissória, vão cair na regra geral do artigo 9º da Lei de
Introdução. Em 2010, a Lei de Introdução até chegou a ser alterada, mas
sabe para quê? Para mudar o nome, que deixou de ser “Lei de Introdução
ao Código Civil” e se tornou “Lei de Introdução às Normas do Direito
Brasileiro”. Em termos práticos, a mudança foi zero. Ou seja, nós temos
uma lei capenga, de 71 anos, que ninguém muda, e a de arbitragem,
novíssima, que está indo bem, nós já vamos mudar...
ConJur — O anteprojeto, agora, se propõe a juntar Arbitragem e Mediação.
Fabiane Verçosa — Esse é um problema sério.
Creio que a tendência é a comissão entender que, se for para regular a
mediação, que seja em uma lei diversa da Lei de Arbitragem. Não são
poucos aqueles que têm dificuldade em distinguir entre mediação e
arbitragem. Caso seja aprovado um diploma único regendo os dois
institutos, a probabilidade de as pessoas confundirem os dois só tende a
aumentar. Eu me pergunto como a população vai lidar com a questão. Em
minhas aulas, tanto na graduação como na pós-graduação, é muito comum
pelo menos um aluno perguntar se o objetivo da arbitragem não é o
acordo... E isso porque nós temos uma lei só de arbitragem há mais de
uma década. Na prática, é difícil conciliar numa mesma lei um instituto
que é contencioso e outro que visa o acordo. Os objetivos são
diferentes. Quando o árbitro dá a sentença, ele sabe que pode desagradar
pelo menos uma das partes, talvez as duas. O mediador, ao contrário,
tentará ao máximo obter um acordo que seja atraente para ambas as
partes. É claro que, na arbitragem, é mais fácil as partes alcançarem um
acordo do que no Poder Judiciário, mas o acordo não é o objetivo
precípuo da arbitragem — que é, por sua vez, o objetivo da mediação. Só
essa comparação já revela como o perfil de cada instituto é distinto.
Fonte: Conjur
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