Desde
a década de 60, do século passado, a participação do Estado na economia
faz-se sentir por meio da sociedade de economia mista, cujo escopo é
desenvolver atividade econômica (Decretos-Leis ns. 200/67 e 900/69),
independentemente de se referir a um serviço público ou não. A
sociedade de economia mista deve ser criada por lei, na forma de
sociedade por ações. É conceituada como pessoa jurídica de direito
privado e a atividade que exerce será sempre econômica (core business). A União, os Estados e os Municípios podem constitui-la.
A
participação de capital público faz com que a sociedade de economia
mista seja auditada pelo Tribunal de Contas, bem como em determinadas
ocasiões pode praticar atos afeitos à área administrativa, mas não,
evidentemente, quando atua como um particular na atividade de exploração
de atividade econômica para a qual foi constituída. Neste caso, pratica
mero ato negocial e, portanto, não se trata de ato administrativo (ato
de autoridade).
Estas
noções básicas e específicas são imprescindíveis para afastar as
generalizações que se efetuam em torno do tema, em especial na seara
arbitral. É freqüente verificar a inclusão de cláusulas compromissórias
em contratos firmados por sociedades de economia mista, entre elas, as
que atuam na área de energia elétrica. Esta atividade é desenvolvida,
também, por pessoas jurídicas eminentemente privadas, sem nenhum elo
como o Estado. A energia elétrica é uma mercadoria e a transação
efetuada por meio de contrato de compra e venda constitui atividade
econômica.
Todavia,
quando surge controvérsia em torno de contrato firmado e ao instaurar a
arbitragem (ou mesmo antes dela) é comum a sociedade de economia mista
negar vigência à cláusula compromissória, com o intuito de afastar a
arbitragem, valendo-se de argumentos inconsistentes, tais como, que não
poderia submeter-se à arbitragem pelo fato de integrar a Administração
Pública Indireta; que a matéria é de direito indisponível (serviço
público concedido); que envolve interesse público etc.
Assim
agindo, além de violar o inafastável princípio jurídico da boa-fé e
seus consectários, tais como, o da confiança legítima e do “venire contra factum proprium”
(ninguém pode se eximir de uma obrigação assumida invocando sua própria
falha) que permeiam todas as relações jurídicas, em especial, as
advindas da Administração Pública Direta e Indireta, é inconcebível
admitir que a sociedade de economia mista não cumpra o assumido, haja
vista a lei de arbitragem determinar que a cláusula compromissória tem
efeito vinculante e afasta a submissão da controvérsia ao Judiciário.
Note-se que em fase prévia ou conjunta à arbitragem, o Judiciário atua
na função de apoio à arbitragem, em contraste com a função de revisão (e se for ocaso), após a sentença arbitral expedida.
Com
efeito, a jurisprudência que vem se consolidando na área,
admiravelmente, explicita e ratifica os conceitos e princípios da lei de
arbitragem, além de exarar, como no caso abaixo citado, verdadeira
lição pedagógica. Neste sentido é de relevo salientar a decisão advinda
do Tribunal de Justiça do Estado do Paraná (Agravo de Instrumento n.
174.874-9/02 –2. Vara da Fazenda Pública do Foro Central da Comarca da
Região Metropolitana de Curitiba), proferida em abril de 2005, que ao
decidir questão envolvendo sociedade de economia mista distribuidora de
energia elétrica, que ao firmar contratos de compra e venda de energia
elétrica de empresa privada estabeleceram a arbitragem como forma de
solução de conflitos deles advindos. Porém, surgidas controvérsias
referentes aos pagamentos correspondentes foram instauradas arbitragens.
Porém, se insurgiu a sociedade de economia mista quanto à discussão da
controvérsia em sede arbitral, alegando que a matéria em tela seria
indisponível.
Esta
questão, no direito da arbitragem, é conceituada como arbitrabilidade
objetiva, pois se refere à disponibilidade de direitos patrimoniais
(art. 1º in fine da Lei nº 9.307/96). A sociedade de economia
mista quando atua na compra e venda de energia elétrica está praticando
atividade puramente comercial, desprovida de qualquer reflexo no direito
administrativo.
Foi
neste sentido que o ilustre juiz Fernando César Zeni ao exarar decisão
afirmou que energia elétrica é mercadoria e, portanto, direito
disponível (Lei nº 10.488/04, art. 4º §§ 5º e 7º). Destarte, a questão é
econômica e não pública, sendo perfeitamente válida a cláusula
compromissória. Ademais, a sociedade de economia mista sujeita-se às regras de mercado e à legislação contratual civil.
Saliente-se
que a sociedade de economia mista não poderia, sob o manto da
indisponibilidade do interesse público (por integrar a Administração
Pública Indireta), eximir-se do que legalmente firmara (“pacta sunt servanda”).
Não há possibilidade, sequer, de anular administrativamente contratos,
que regulam relações da Administração em caráter privado (“não pode a
Administração anular atos realizados sob o império do direito privado” –
TAPR , Ap. C. 247.646-0, 7. CC, j. 11.02.04).
No
caso referido e para obstaculizar as demandas arbitrais valeu-se a
sociedade de economia mista, indiretamente, de expediente em ação
popular, obtendo liminar, que fora cassada por decisão em Agravo de
Instrumento proposto pela empresa privada. Este julgado determina a
preservação dos institutos jurídicos do direito da arbitragem, em face
dos demais dispositivos de direito material e processual. Em especial,
entre outros, aduzindo que compete ao tribunal arbitral avaliar sua
própria competência (art.8). Além disso, o ilustre juiz demonstrando sensibilidade e conhecimento exara maravilhosa lição pedagógica ao aduzir: “...por isso afirmo, que as alegações da [sociedade de economia mista]
não são maduras, mas sim, inconvenientes, e visam, em última análise
impedir, por via oblíqua (a propalada ação popular), alterar todo o
regime jurídico instituído pela Lei nº 9.307. Seria muito conveniente
eleger um árbitro, pagar por isso (com dinheiro público, frise-se) e
depois, de maneira simplória, por meio das ações judiciais, alegar que o
direito discutido na arbitragem é indisponível (compra e venda ?!?!?)
e, portanto, não pode prosseguir. Simplesmente ininteligível.”
Note-se,
ademais, que a confirmação jurisprudencial em reconhecer
definitivamente a capacidade da Administração Publica Direta e Indireta
em firmar a convenção de arbitragem em contratos com particulares,
alinha-se com os contratos de concessão de serviços públicos da época
imperial; no precedente denominado caso Lage; no caso de saneamento
básico julgado pelo Tribunal de Justiça do Distrito Federal em 1999; no
famoso caso Lloyd Brasileiro v. Ivarans Rederi, sendo o extinto Lloyd
uma empresa de economia mista; a Compagás, no Estado do Paraná etc.
Mas a lição pedagógica que fica deste acórdão, que já se inscreve como um leading case para
os casos em que as sociedades de economia mista e a Administracão
Pública firmam contratos com cláusula de arbitragem é que “não se pode permitir que por vias oblíquas a Lei de Arbitragem seja reduzida à inutilidade.” E
mais. Sua função pedagógica vale como uma advertência aos que pretendem
obstaculizar o regular e irreversível papel que a arbitragem desempenha
como forma de acesso à Justiça, no despertar do século XXI.
Selma Ferreira Lemes, é
advogada, mestre em direito internacional e doutora em Integração da
América Latina pela Universidade de São Paulo. Professora e coordenadora
do Curso de Arbitragem do FGVLAW da Escola de Direito de São Paulo-
EDESP/FGV. Autora do livro “Árbitro. Princípios da Independência e da
Imparcialidade” (São Paulo, LTr, 2001).
No comments:
Post a Comment